Por Fernanda Rocha Macedo[1]
Este ensaio traz o campo da Sociologia do Conhecimento como um dado do princípio que o conhecimento não é neutro, mas historicamente situado e socialmente condicionado. As formas de saber, o sujeito que tem autorização para produzir conhecimento e os lugares de circulação reconhecidos como legítimos para este estão profundamente marcados pela relação de poder, e especialmente pelas relações estruturadas pelo colonialismo, pelo racismo e pelo patriarcado.
A Filosofia do Ocidente é um exemplo disso, em que tradicionalmente definiu uma crença, verdadeira e justificada (C.V.J). Segundo esse entendimento, para que algo fosse considerado conhecimento, é necessário que um sujeito teria de crer numa preposição e esta preposição ser verdadeira e ter razões já justificadas, que a própria crença ou teorias procuradas por ele. Essa concepção possuí seus limites quando compreendemos o campo das disputas sociais, culturais, gênero, território e raciais sobre quem tem o direito de produzir e validar o saber do conhecimento. E, por isso, é dentro da problemática do racismo epistemológico e tendo como suporte a Sociologia do Conhecimento, que este ensaio propõe pensar sobre como as formas de representação na mídia expressam esse racismo epistemológico e como os sujeitos negros, principalmente as mulheres negras jovens, têm reagido ao longo da história a esse silenciamento através de práticas que reinstaura sua centralidade nas construções de saberes, memórias e territórios.
A televisão ocupa um lugar de destaque na constituição do imaginário social no Brasil, se revela muito mais que uma forma de entretenimento: é um campo simbólico e econômico em disputa, um espaço de construção e reprodução da cultura dominante. Nesse sentido, a telenovela, que pode ser considerada o produto televisivo de maior repercussão na sociedade brasileira, se encontra inserida num subcampo bastante específico, o do folhetim, que é atravessado, por interesses do mercado publicitário, por lógicas de audiência e por determinadas ideologias hegemônicas. Como sustenta François Jost (2007), uma emissora de televisão é uma empresa, uma instituição e uma marca, ou seja, sua programação responde simultaneamente à busca de lucro e para a preservação de certos valores sociais. No Brasil, a televisão e privada desde sua origem e nasce orientada por interesses comerciais, sendo instrumentalizada desde seu início para a reprodução dos “modos de vida” da elite dominante e para inferiorizar mentalmente aos negros e mestiços (Santos, 2021).
Por décadas, a maior empresa de teledramaturgia do Brasil, a Rede Globo, produziu uma dramaturgia de viés branco. Os protagonistas, as famílias fundamentais e os heróis das histórias, em sua maioria, eram personagens brancos, urbanos e de classe média, e personagens negros eram relegados a papéis secundários, subalternizados ou estereotipados. Essa estrutura não se resume a uma escolha de elenco, mas se refere à maneira pela qual o saber, a sensibilidade e a humanidade negra foram negados pela representação midiática.
A autora Lélia Gonzalez (2020), em discurso histórico na constituinte de 1987, denunciava como os meios de comunicação reforçam a ideologia do embranquecimento ao associarem o positivo à brancura e o negativo à negritude, até mesmo na escolha de pessoas de pele clara para viver os personagens negros, como por exemplo a novela Escrava Isaura (1976), estrelada por uma atriz branca. A construção dos casais interraciais, na qual a mulher negra é frequentemente representada como objeto do desejo do homem branco, também coronam a retórica do branqueamento como solução para a mobilidade social.
Conforme a Sociologia do Conhecimento nos ensina, o conhecimento é socialmente localizado e influencia-se nas relações de poder. As imagens veiculadas nos meios de comunicação não apenas moldam o modo com que enxergamos o outro, mas também o modo pelo qual nos enxergamos. O silenciamento da população negra nas novelas, e especialmente das mulheres negras, não diz respeito apenas a não estar em cena, mas a não estar em enredos, não estar em afetos e não estar em epistemologias. É assim que a televisão brasileira é um espaço de legitimação da hegemonia branca, funcionando como um dos pilares da reprodução das desigualdades raciais, de gênero e de classe (Moreira, 2019).
Certa mudança pode ser notada na Globo em 2023, pela primeira vez, todas as novelas inéditas da Globo têm protagonistas negros, como Diogo Almeida (Amor Perfeito, novela das 18h), Sheron Menezzes (Vai na Fé, novela das 19h) e Bárbara Reis (Terra e Paixão, novela das 21h). Isso é uma grande conquista, porém, não resolve as questões estruturais da representatividade. Os roteiros são ainda predominantemente escritos por brancos e cargos de direção continuam sendo algo raro para negros. A presença de corpos negros no centro das histórias não é garantia, por si só, da modificação de lógicas de produção de sentido. Ela aparece muito mais dentro da lógica do mercado identitário, que se alimenta de pautas progressistas na sua busca por maior consumo, mas sem romper com as estruturas racistas.
É neste contexto que surgem propostas contra-hegemônicas como o Afrofuturismo. Isso significa que é mais que uma estética, mas sim uma epistemologia insurgente, entrelaçando ancestralidade africana, ciência, arte e imaginação, para projetar futuros, na qual a experiência negra não está à margem, mas em sua centralidade. O Afrofuturismo questiona o apagamento histórico e cria narrativas alternativas, em que sujeitos negros produzem conhecimento, tecnologia e futuro (Womack, 2013).
Em 2025, a novela Garota do Momento traz como protagonista uma mulher negra jovem que vive nos anos 50, habita os espaços culturais e midiáticos: ela não apenas representa, mas cria, narra e disputa saberes. Sua existência é também uma forma de resistência epistêmica. Mais do que ocupar um lugar de visibilidade, a figura da Garota do Momento reconfigura os símbolos e saberes. Ao inscrever em suas estéticas referências aos orixás e às cosmologias afro-brasileiras, ela reinventa os códigos da moda, da música e da arte dialogando com a ancestralidade negra. O uso de elementos como colares de contas, turbantes, cabelos cacheados, cabelos crespos, as cores associadas às divindades e os corpos que dançam com Exu, Iansã ou Oxum, além de algumas campanhas publicitárias recentes, afirmam que o sagrado negro pode também se incorporar ao centro do espetáculo midiático. Mais do que isso, mostram que esses saberes são constituindo epistemologias vivas, pluralistas e em disputa. Trata-se de uma insurgência estética que, ao evocar os orixás, também convoca uma cosmopolítica (Santos, 2009) capaz de romper com a monocultura eurocêntrica da razão e dar centralidade a outras formas de existência.
Nesse sentido, ao trazer ainda o conceito de interseccionalidade, de Kimberlé Crenshaw (1989, 1991), e aprimorados pelas autoras Patrícia Hill Collins (2016, 2019) e Lélia Gonzalez (1984, 1988), pode-se afirmar que a exclusão de mulheres negras na teledramaturgia não é explicada por racismo apenas e/ou sexismo apenas, mas pela intersecção entre ambos. A mulher negra não é apenas invisibilizada enquanto corpo racializado, mas também enquanto sujeito epistêmico.
Logo, refletir sobre onde estão os negros na programação da Rede Globo diz respeito a pensar sobre quem pode existir por inteiro na imaginação nacional. O campo da teledramaturgia enquanto produtor de conhecimento simbólico tem sido espaço simultaneamente tanto de exclusão como de novas narrativas emergentes, isto é, ser reconhecido como sujeito legítimo de desejo, de conhecimento, de protagonismo e de humanidade. A televisão, enquanto tecnologia social e produtora de sentidos, não apenas representa o mundo, mas contribui ativamente para moldá-lo: define lugares possíveis para os sujeitos, distribui valor simbólico e orienta o modo como percebemos o que é “normal”, “belo”, “inteligente” ou “civilizado”.
Contudo, esse cenário não está dado para sempre. Aos poucos, ele tem sido atravessado por vozes que antes foram silenciadas. As práticas culturais e políticas que emergem da juventude negra tece tensões neste campo e anunciam futuros em que os saberes negros não apenas são tolerados, mas celebrados como parte constituinte da construção de outro mundo possível. São jovens que ousam criar outras imagens, outros futuros, outras formas de estar no mundo. Eles e elas não estão apenas pedindo para entrar num espaço que historicamente os rejeitou, estão na verdade se reinventando as regras do jogo, criando suas próprias linguagens, resgatando memórias e saberes ancestrais.
Portanto, ao observar o modo como sujeitos negros são (ou não são) representados na teledramaturgia, estamos, na verdade, lidando com uma questão epistemológica: quem pode sonhar, quem pode narrar e quem pode ser referência de humanidade no imaginário coletivo do Brasil. A tensão entre exclusão e emergência de novas narrativas revela que a televisão não é um campo neutro, mas um espaço em disputa e é exatamente nas brechas dessa disputa que se anunciam futuros em que os saberes negros não apenas resistem, mas florescem como força criadora de mundos possíveis, plurais e emancipatórios. Assim, é por isso que a cada brecha, cada fissura aberta por essas novas narrativas é necessária e preciosa. São nesses espaços de tensão, entre o que cala e o que grita, que brotam futuros possíveis em que onde os corpos e saberes negros não apenas resistem, mas florescem com força criadora, abrindo caminho para um outro mundo, mais justo, mais diverso e verdadeiramente nosso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. In: ONU. Estudos feministas. Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171–188, 2002.
COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do
pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1
Janeiro/Abril 2016.
COLLINS, Patricia Hills. Pensamento feminista negro: Conhecimento, consciência, e a política do empoderamento. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2019.
GOMES, Ana Ângela Farias; RAMOS, Victor Adriano. Tem negras nessa novela? A representação da mulher negra em “Lado a lado”. Revista TOMO, São Cristóvão, v. 42, e18803, 2023. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/tomo.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, Luiz Antônio Machado da (org.). Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. São Paulo: ANPOCS, 1984. p. 223–244.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, n. 92/93, p. 69–82, 1988.
JOST, François. Compreender a televisão. Porto Alegre: Sulina, 2007.
MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. Editora Jandaíra; 1ª edição, São Paulo: 2019.
SANTOS, Richard. Maioria Minorizada: um dispositivo analítico de racialidade. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2020.
SANTOS, Richard. Branquitude e televisão: a nova África (?) na TV pública. Rio de Janeiro: Telha, 2021.
WOMACK, Ytasha. Afrofuturism: The world of Black sci-fi and fantasy culture. Chicago: Lawrence Hill Books, 2013.
[1] Estudante da graduação no curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP) de Marília, SP. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) de Ciências Sociais do Ministério da Educação (MEC), E-mail: fernanda.r.macedo@unesp.br