Por Renato de Oliveira Pereira
Quatro anos depois, Donald Trump retorna à Casa Branca para ocupar a liderança do país mais poderoso do Ocidente. E não volta sozinho, mas acompanhado de uma trupe de radicais de extrema-direita, o que inclui o apoio – mais direto ou mais envergonhado – de CEOs (na linguagem popular, os “chefões”) de grandes empresas de tecnologia do mundo, as chamadas Big-techs. Marcaram presença na cerimônia de posse do novo governo figuras como Mark Zuckerberg, dono da Meta, Jeff Bezos, da Amazon, Sunder Pichai, da Google, Tim Cook, da Apple, Sam Altman, da OpenAI, e Elon Musk, da SpaceX, Tesla e X (antigo Twitter). Este último, cuja simpatia pela extrema-direita já estava mais do que explícita, não só assumirá um cargo na nova administração como também fez a conhecida saudação nazista Seig Heil[i] durante o seu discurso na comemoração da posse de Trump, diante de uma plateia de trumpistas entusiasmados que lotaram a Capital One Arena, em Washington.
Em seu discurso, Musk disse que a eleição de Trump representa a vitória da civilização. Resta perguntar: qual civilização? Mas só se espanta com o uso distorcido da palavra civilização quem não se recorda das experiências históricas do colonialismo e do imperialismo que dizimaram povos inteiros em virtude da ânsia por riqueza e poder de seres humanos que se consideravam superiores, civilizados. Foi com o genocídio de povos considerados selvagens, o apagamento de culturas, tradições e conhecimentos (epistemicídio), a escravização, sobretudo dos negros africanos, e com a exploração de seu trabalho que o capitalismo europeu pôde se desenvolver e nutrir a civilização ocidental. No século XX, o nazifascismo também procurou eliminar os grupos que consideravam como inferiores, tais como os judeus, ciganos, homossexuais e comunistas, perpetrando um dos maiores genocídios da história, também com a justificativa de supostamente criar um mundo ideal. A ideologia e a prática colonialista aparecem, hoje, na disputa de Israel pelos territórios palestinos, resultando no genocídio perpetrado contra o povo palestino para se criar a Grande Israel.[ii]
No debate contemporâneo, categorias como neofascismo, tiranias modernas e autoritarismo de viés fascista passaram a ser utilizadas para descrever movimentos e governos de extrema-direita mundo a fora, inclusive o governo de Bolsonaro no Brasil (2018-2022).[iii] Tais termos refletem a percepção das muitas afinindades e pontos comuns entre os discursos e as práticas dos extremistas com o que acontecia na Alemanha sob o nazismo e na Itália sob o fascismo. No contexto atual, o gesto do bilionário Musk parece indicar uma tentativa de filiação ou, ao menos, uma revisitação das catacumbas da História para buscar inspiração em velhas formas de dominação a serem aplicadas novamente em nosso tempo. Afinal “as soluções totalitárias”, como lembra a filósofa Hannah Arendt, “podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem”.[iv]
É nesse sentido que a saudação nazista feita pelo bilionário dono da Starlink impressiona, especialmente por estar longe de ser um gesto casual. Acostumado à lógica imagética das redes sociais, o dono do X certamente não se deixou levar pelo “calor do momento”, mas executou um ato muito bem pensado, calculado com precisão. E é possível deduzir de tal gesto uma miríade de significados. Para o cientista político Luís Felipe Miguel, a mensagem é clara: “estamos voltando”.[v] Mas gostaria de chamar atenção para o fato da total ausência de controle social, inclusive do Estado, sobre essas empresas. Isso porque fazer publicamente a saudação Seig Heil está longe de ser a pior coisa que pode ser feita por um bilionário que tem em suas mãos uma maquinaria tecnológica muito mais poderosa e eficiente do que a máquina de propaganda totalitária de Hitler. Hoje não há mais uma separação clara entre o real e o virtual. A internet, os algoritmos e as redes sociais virtualizaram o real e, ao fazê-lo, a informação se tornou ainda mais manipulável, ultrapassando de maneira incomensurável as artimanhas que podiam ser empregadas em campanhas políticas na TV, no rádio e em outras mídias tradicionais.
Ao contrário do que alegam as Big-Techs, as redes sociais não são um espaço democrático, tampouco um lugar no qual as pessoas podem se expressar livremente. As redes sociais são grandes empresas, gigantescos conglomerados cujo objetivo é o extrair o máximo de lucro daquilo que veem como um negócio: a atenção e os dados do usuário, o tempo que as pessoas passam vendo e interagindo “na tela”. Em um espaço no qual os dados estão desprotegidos e as informações são constantemente manipuladas em sua visibilidade, alcance e repercussão por meio da intervenção deliberada dos algoritmos, não pode haver liberdade de expressão, muito menos igualdade, justiça e democracia. Pelo contrário, cria-se as condições para uma vigilância constante dos usuários, o que faz alguns autores utilizarem o termo capitalismo de vigilância para descrever esse cenário.[vi]
E erram aqueles que veem na saudação nazista do bilionário Elon Musk apenas um ato representativo de sua própria pessoa. Muitas das Big-techs contribuíram com doações na casa de milhões de dólares para o evento de posse de Trump. Além disso, em um aceno a Trump antes mesmo de sua posse, Mark Zuckerberg divulgou vídeo encerrando o programa de checagem de informações das redes da Meta e acusou de “censura” os países que defendem algum tipo de regulamentação das redes para evitar a proliferação de desinformação e notícias falsas. Assim, sem nenhum compromisso com os seus usuários a não ser o de instigá-los a permanecer online, Zuckerberg ampliou a possibilidade de disseminação de desinformação e discursos de ódio em redes sociais como Facebook e o Instagram, o que pode ter sérias consequências sociais e políticas, sobretudo em momentos críticos como períodos de campanha eleitoral, conflitos sociais ou de emergência sanitária, como a pandemia de Covid-19 não nos permite esquecer.
Tudo isso evidencia que a possibilidade da democracia no século XXI passa, inevitavelmente, pela luta política em torno da regulamentação das redes sociais, o que implica na inglória tarefa de desafiar a rede de poder técnico-científico, informacional e econômica das Big-techs. Do contrário, cada vez mais a democracia funcionará apenas formalmente, “na aparência”, como a cena Biden passando o cargo para Trump – o que, em 2021, o atual presidente americano se recusou a fazer ao próprio Biden, ação que, em 2023, foi reproduzida no Brasil por Bolsonaro, quando este viajou aos Estados Unidos para não passar a faixa presidencial a Lula. A destruição da democracia “por dentro”[vii], com o esgarçamento das instituições, tende a aumentar o radicalismo e a escalar, com o aval de líderes de Estado e o impulsionamento das redes sociais, os discursos e práticas violentas contra negros, imigrantes, mulheres, LGBTQIA+, indígenas, palestinos, mulçumanos, orientais e qualquer outra minoria ou grupo passível de ser transformado em um bode expiatório. Dessa maneira, a violência extrema contra a figura do outro e a possibilidade de divergência passa a ser legitimada em prol da construção de uma suposta “Era de Ouro”.
E, no entanto, é preciso lembrar que esses “líderes” têm o apoio e até a admiração das massas… Hitler foi eleito em 1932. Eleito em 2016, Trump conquistou uma nova vitória eleitoral em novembro do ano passado, mesmo sendo alvo de processos criminais, incluindo a tentativa de reverter o resultado das eleições de 2020 e impedir a posse do presidente eleito. E dentre os primeiros atos da nova gestão trumpista está justamente o cumprimento da promessa de conceder o indulto presidencial para centenas de golpistas que invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2020. Inflamados por Trump, então candidato derrotado nas eleições, uma multidão de seus apoiadores invadiu a sessão conjunta do Congresso americano para tentar impedir a confirmação da vitória de Joe Biden. O tumulto golpista causou a morte de cinco pessoas, inclusive um policial, além de mais de uma centena de vítimas e danos ao patrimônio público americano.[viii] Outros atos expedidos no primeiro dia do novo governo, como a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas e da Organização Mundial da Saúde (OMS), que teve papel central durante a pandemia da Covid-19, bem como os inúmeros decretos contra imigrantes completam o quadro e dão o tom de como será a gestão do 47º presidente americano. É notável que a estratégia de destruir a democracia “por dentro”, negar a ciência e radicalizar o discurso contra as minorias, sobretudo contra os imigrantes, voltou ao centro do Império americano que, também como uma forma de reação à ascensão da China como grande potência mundial, parece cada vez mais desvairado.
No Brasil, o cenário mais otimista é o de que seremos capazes, assim como nossas instituições, de demonstrar resiliência para servir como uma espécie de contraponto no cenário internacional, em vez de apenas assistirmos a tudo “bestializados”. Na primeira reunião ministerial do ano, referindo-se à posse de Trump, o presidente Lula disse que o Brasil não quer briga com nenhum país, mas sim paz e harmonia.[ix] Foi uma fala sensata e equilibrada, mas talvez o momento torne ainda mais sensato o antigo provérbio si vis pacem, para bellum (se queres a paz, prepare-te para a guerra). E aqui não me refiro à preparação para um conflito bélico – embora o cenário atual pareça estar quase todo configurado para uma nova guerra mundial –, mas sim à luta que enfrentamos atualmente no campo informacional, principalmente nas redes sociais.
Nesse âmbito, o governo brasileiro tem perdido a guerra que se tornou a comunicação, como demonstra o recente caso da Instrução Normativa nº 2.219/24, da Receita Federal. Esta portaria estabelecia o monitoramento, pelas instituições financeiras, das transações via Pix acima de 5 mil reais e de 15 mil reais para pessoas físicas e jurídicas, respectivamente, visando coibir fraudes e lavagem de dinheiro.[x] Mas uma série de desinformações e distorções nas redes sociais sobre a portaria colaram a ideia de que as transações via Pix poderiam ser taxadas. Impulsionado pelo algoritmo do Instagram, o vídeo de um deputado de oposição, com informações claramente tendenciosas sobre o tema, chegou a alcançar mais de 300 milhões de visualizações.[xi] Isso gerou forte desconfiança em uma parcela significativa da população, com comerciantes passando a cobrar mais por pagamentos via Pix, antes equiparado a dinheiro em espécie. Golpistas também se aproveitaram da desinformação para emitir boletos falsos, usando o nome da Receita Federal, com cobranças ou multa pelo uso do Pix. Perdida a batalha da comunicação, o governo precisou recuar e revogar a portaria na mesma semana em que um marqueteiro profissional assumiu a Secretaria de Comunicação.[xii]
Casos como esse mostram que um dos maiores desafios a ser encarado é o fato de que, sob os auspícios das Big-techs e suas redes, as pessoas estão sendo levadas a acreditar em informações falsas e tendenciosas. Mais do que isso, as pessoas estão sendo levadas a incorporar o discurso radicalizado da extrema-direita, disseminado não só nos Estados Unidos e no Brasil, mas em todo mundo, inclusive na Europa, por partidos como o AfD na Alemanha, o RN na Franca, o Vox na Espanha e o Chega em Portugal. E o fazem por acreditar que se trata de uma solução plausível, ainda que amarga, para os problemas e as aflições que enfrentam cotidianamente. Assim, para citar o velho filósofo Espinosa, essas pessoas passam a “lutar pela sua servidão como se lutassem pela sua salvação” [xiii], servindo como peças descartáveis no jogo de poder disputado por bilionários que aprenderam a lucrar até mesmo com os dados alheios extraídos pelas plataformas. Inclusive aquele que, teatralmente e sem nenhum pudor, ressuscitou o cumprimento nazista utilizado no Terceiro Reich para saudar o novo governo dos Estados Unidos da América.
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[i] Do alemão “salve a vitória” ou “viva a vitória”, foi uma expressão adotada pelo partido nazista alemão. Também foi utilizada como “Heil Hitler” (“Salve Hitler”).
[ii] A atitude colonial de Israel no território palestino é o foco das análises do intelectual palestino-americano Edward Said em A questão da Palestina (2012 [1992]) e do historiador Rashid Khalidi, também palestino-americano, em seu livro Palestina: um século de guerra e resistência (1917-2017) (2024[2020]). Sobre o atual genocídio na Faixa de Gaza, conferir o Relatório Anatomy of a genocide, de Francesca Albanese, relatora especial da ONU sobre os direitos humanos no território palestino ocupado desde 1967, disponível em: https://www.un.org/unispal/document/anatomy-of-a-genocide-report-of-the-special-rapporteur-on-the-situation-of-human-rights-in-the-palestinian-territory-occupied-since-1967-to-human-rights-council-advance-unedited-version-a-hrc-55/. Acessado em: 21 jan. 2025.
[iii] O termo “neofascismo” é utilizado por vários autores para designar uma nova forma de fascismo, adaptada à situação contemporânea. Já o termo “tirana moderna” foi cunhado pela filósofa húngara Agnes Heller, principalmente para descrever governo de extrema-direita de Viktor Orbán na Hungria (cf.: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/18/actualidad/1555585620_542476.html). “Autocratismo de viés fascista” é um termo do cientista político André Singer para descrever o governo Bolsonaro (cf.: https://www.scielo.br/j/ln/a/Zc3fR5TmzYFq8DSrZ4YdjBR/abstract/?lang=pt).
[iv] Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 (p. 610).
[v] Comentário de Luis Felipe Miguel disponível em: https://substack.com/@lfmiguel/note/c-87543556. Acessado em: 21 jan. 2025.
[vi] Refiro-me, principalmente, ao livro A era do capitalismo de vigilância (2021[2019]), de Shoshana Zuboff. Sobre o tema, conferir também a coletânea organizada recentemente pelo LaReVi (Laboratório de Realidades Virtualizadas da Unesp de Marília-SP), intitulada Realidades virtualizadas e o contexto brasileiro: problematizações e resistências (2024). Disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/realidades-virtualizadas-e-o-contexto-brasileiro-problematizacoes-e-resistencias/. Acessado em 21 jan. 2025.
[vii] A destruição da democracia “por dentro” é uma estratégia que se utiliza da legitimidade política, obtida por meio de vitória eleitoral, para romper com a ordem social de maneira não abrupta, tomando medidas que visam minar gradualmente as instituições e garantias democráticas. Dentre os autores que discutem o tema, destacam-se Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, sobretudo com a obra Como morrem as democracias (2018). Conferir também livro Estado e democracia (2021), de André Singer, Cicero Araujo e Leonardo Belinelli, sobretudo o capítulo 6.
[viii] Sobre a invasão do Capitólio em 6 de Janeiro de 2021, conferir: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-2024/invasao-no-capitolio-relembre-quando-ultima-certificacao-foi-interrompida/. Acessado em: 21 jan. 2025.
[ix] Fonte: G1, 20 jan. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/01/20/lula-diz-torcer-por-gestao-proficua-de-trump-nao-queremos-briga-com-venezuela-americanos-china-india-e-russia.ghtml. Acessado em 21 jan. 2025.
[x] Fonte: BBC Brasil, 15 jan. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c626wn6qg2lo. Acessado em: 21 jan. 2025.
[xi] Fonte: Poder360, 16 jan. 2025. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-congresso/video-de-nikolas-sobre-o-pix-chega-a-300-mi-de-visualizacoes/. Acessado em: 21 jan. 2025.
[xii] Fonte: CNN Brasil, 14 jan. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/escalado-para-nova-fase-do-governo-sidonio-toma-posse-como-ministro-da-secom/. Acessado em: 21 jan. 2025.
[xiii] Espinosa, Baruch. Prefácio. In: Tratado Teológico-Político. Trad. Diogo Pires Aurélio. 2. e. São Paulo: Martins Fontes, 2008.