Por Rafael da Silva Shirakava
Vida danificada
A vida danificada[1] é aquela que se perde na busca de um sonho desejado pelo Outro. Trata-se de seguir caminhos impostos por uma cultura determinada pela lógica de reprodução do capital, que restringe a existência da maioria dos indivíduos. Nesse contexto, o sujeito é condicionado a percorrer labirintos fáusticos, revestidos de pedras e espinhos, sem qualquer garantia de êxito, por mais que agências de publicidade e propagandas enunciem o contrário. Em Minima moralia (1993), Theodor W. Adorno sinaliza que toda filosofia deve se dirigir ao sofrimento humano. Esquivar-se disso equivaleria a legitimar o caráter opressor da sociedade administrada — isto é, a condescender com a naturalização, a racionalização e a reificação das desigualdades. Em razão disso, “não há mais nada de inofensivo”, de modo que, para Adorno (1993, p. 19):
As pequenas alegrias, as manifestações da vida que parecem excluídas da responsabilidade do pensamento não possuem só um aspecto de teimosa tolice, de um impiedoso não querer ver, mas se colocam de imediato a serviço do que lhes é mais contrário.
Desse modo, a anulação da humanidade e a defesa aguerrida do status quo expressam “[…] que o indivíduo enquanto indivíduo, como representante do gênero humano, perdeu a autonomia através da qual poderia realizar efetivamente o gênero” (Adorno, 1993, p. 31). Adorno sublinha que “não há vida correta na falsa” (1993, p. 33). Qualquer espontaneidade é invalidada pela padronização socialmente[2] determinada da realidade interna e externa ao sujeito — processo que conduz à “coisificação da consciência” (Adorno, 2021). Nessa condição, o Eu não consegue extrapolar os limites impostos pela reificação que o subordina.
Com efeito, o capitalismo usurpou dos indivíduos a consciência espontânea e criativa e a transformou em instrumento unilateral de dominação — e, nesse sentido, a indústria cultural corresponde a essa materialização racionalizada da criatividade. Ou seja, é a efetivação da totalidade, que tende a eliminar as contradições. Harmoniza-as em um sistema fechado, com poucas aberturas à alteridade ou linhas de fuga. O universal se sobrepõe ao singular, degradando-o.
Sobre o tema da degradação do indivíduo, no livro Eclipse da razão (2015), Max Horkheimer descreve esse processo como o aniquilamento da consciência crítica que, em última instância, visa adaptar-se às normas e leis de uma cultura já deteriorada. Nessa obra, o filósofo alemão sustenta a tese segundo a qual a racionalidade do irracional converteu-se na principal “virtude” da sociedade unilateral, estruturada pela lógica do consumo — fenômeno que Herbert Marcuse (2015) denominou razão tecnológica, na qual se impõem o controle e a padronização da linguagem, da política, dos comportamentos e da sexualidade.
Nesse cenário, realiza-se a inversão entre meios e fins, na qual os primeiros se sobrepõem aos últimos — o autêntico eclipse da razão. Disso decorre que o outro é percebido como meio e não fim em si mesmo, visto como instrumento, o que se contrapõe à virtude idealista proposta por Kant. Portanto, na sociedade administrada, a operacionalidade da racionalidade formulada por Kant foi pervertida. Com isso, a barbárie se intensificou, deteriorando a liberdade e a autonomia, elementos fundamentais para a dignidade dos sujeitos. A perversão ética é efeito da reificação social.
Barbárie e adultização da infância
Sobre o tema da barbárie, Adorno (2021) é cirúrgico, definindo-a como um descompasso frente às pessoas e o desenvolvimento tecnológico.
Para o teórico crítico, há uma ambivalência com relação à cultura, um ódio primitivo ou “[…] um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza” (Adorno, 2021, p. 169). Existe, em tudo isso, um sofrimento inerente aos processos de socialização — do qual a neurose é a representação máxima da “adequação” do sujeito às normas e instituições necessárias às formações culturais. Por essa razão, pode-se falar da existência de uma claustrofobia no mundo administrado (Adorno, 2021); compreendido como sintoma da assimetria entre a condição dos sujeitos e aquilo que a civilização exige de cada um, a promessa de segurança.
Nos termos de Adorno (2021, p. 132), as pessoas têm “[…] um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede interconectada”. E, como acrescenta o filósofo, “quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída” (Adorno, 2021, p. 132). Ou seja, sob a superfície da civilização, há conteúdos recalcados que, sintomaticamente, retornam e, quando não elaborados, acentuam o mal-estar. Assim sendo, entende-se que a adultização da infância nas redes sociais advém disso — e que pode ser compreendido como uma amplificação da indústria cultural, que, sob o capitalismo de vigilância[3], expressa suas facetas cínicas (Horkheimer, 2015), violenta e totalitária (Adorno; Horkheimer, 2006). Conforme salientam Adorno e Horkheimer (2006, p. 165):
Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho.
Hoje, a indústria cultural é (re)apresentada através de aparelhos celulares que armazenam diversos aplicativos. Cada um possui uma função, mas, em sua totalidade, operam em prol do telos neoliberal, a saber, o lucro em consonância com o individualismo exacerbado. É nesse campo que a ética kantiana se desmorona e as virtudes da razão perdem seus potenciais de resistência, resultando na exacerbação daquilo que Kant cunhou por “mal radical”. Em síntese, isso significa seguir os próprios impulsos e desejos, ou mesmo a tutela do outro, desprezando a autonomia — ponto nodal para a realização plena e para a expressão da natureza humana.
Considerando o exposto, é lícito explicitar que é o lucro que gerencia e permite que abominações como a adultização da infância atinjam espaços visíveis ou invisíveis, codificados ou não pelos algoritmos e toda a sua engenharia de dados. Com efeito, o que torna tudo isso perverso são as práticas de exposição e exploração de imagens de crianças e adolescentes — mesmo com uma Constituição[4], um Estatuto[5] e outros dispositivos para coibir a violação dos direitos desses sujeitos[6].
Este panorama evidencia de maneira flagrante a fragilidade do pacto social brasileiro[7] — a corrosão da Lei, em termos psicanalíticos, como representação dos valores e normas culturais necessários à subjetivação e à estruturação do sujeito, mutilando a dignidade do outro, no caso, crianças e adolescentes.
Cordialidade: instrumento de consolidação da barbárie
A cordialidade[8], fenômeno tipicamente brasileiro, parece se manifestar nas práticas que violam os direitos de crianças e adolescentes, transformando-as em objetos para satisfação obscura. De pornografia explícita e implícita em páginas virtuais, passando por crianças coaching e pastores mirins, veem-se incontáveis violências — no plural, já que não há direito violado isoladamente. Jeitinho brasileiro de proteger crianças e adolescentes? Certamente, visto que os dispositivos legais não avançam naquilo que, em tese, deveriam atingir: a segurança e o desenvolvimento infantojuvenil. Nestas circunstâncias, parte significativa da sociedade brasileira naturalizou as opressões que esses sujeitos sofrem — dos programas dominicais da década de 1990 aos casos de Hytalo Santos e Kamyla Maria Silva (‘Kamylinha’), passando por abusos de diversas ordens, como espancamentos[9], sexualização[10] e trabalho infantil[11].
O frisson após o vídeo do influenciador Felca[12] representou o tom desavergonhado de indignação típico da cordialidade brasileira, na qual as violências são realizadas cotidianamente, a céu aberto, diante de nossos olhos, mas, quando focalizadas, parecem constituir um evento inédito e estarrecedor. Esse comportamento revela aquele lado defensivo da “neurose”: ignorar quaisquer elementos que remetam à angústia e, assim, fingir que nada está acontecendo. No entanto, quando o assunto vem à luz da consciência, passa a ser encarado de forma cínica, movimentando a opinião pública, os profissionais da saúde e, não menos importante, o Congresso Nacional.
No fim das contas, o mais cruel é que crianças e adolescentes violentados(as) precisam, a duras custas, lidar com o sofrimento traumático oriundo das influências do Outro — redes sociais, instituições e, claro, a própria constituição psíquica enquanto ser linguageiro[13]. A própria socialização de crianças e adolescentes é marcada por violências, seja familiar, seja escolar, que em grande medida se projetam nas redes sociais, cujas dinâmicas são multifacetadas, para o bem ou para o mal.
Por sua vez, a barbárie, que se materializa e se expande capilarmente nos dispositivos eletrônicos, encontra lastro tanto na cordialidade brasileira quanto na legitimação tácita da extrema-direita, por meio do expediente retórico da chamada “liberdade de expressão”. Em sua discursividade, perverso-paranoica, os membros desse espectro político afirmam que a regulamentação das mídias — ação imprescindível para coibir legalmente práticas perniciosas — não passaria de uma manobra da esquerda para silenciá-los. Afinal, como declarou Jair Bolsonaro[14], em 2022, numa hipérbole que reduz a vida à caricatura de um slogan: “podemos até viver sem oxigênio, mas jamais sem liberdade…”. Romeu Zema[15], atual governador do estado de Minas Gerais, atualiza esse grotesco argumento ao falar: “É muito baixo o governo do PT usar o combate a esse crime para propor regulação das redes, criando instrumentos para perseguir adversários políticos…”.
Em outros termos, portanto, esse grupo político prefere a permanência das violações dos direitos das crianças e adolescentes, já que a “liberdade de expressão” é muito mais relevante do que os crimes contra a humanidade. Além disso, não é preciso muito esforço para compreender que a extrema-direita se satisfaz com as injustiças sociais — mesmo que isso signifique instrumentalizar crianças e adolescentes para obtenção de alguma vantagem. Os ataques a espantalhos, como a ‘ideologia de gênero’, indicam a perversão discursiva dos defensores da moral e dos bons costumes. Por um lado, atacam pautas que visam garantir a integridade de crianças e adolescentes; por outro, afirmam que devemos protegê-las contra o “mal” do comunismo e da cultura woke. Essa contradição discursiva, no entanto, evidencia a real falta de preocupação tanto da extrema-direita quanto de seus apoiadores. O que eles buscam é a manutenção do caos social, o qual, em última instância, pode proporcionar algum nível de satisfação, ainda que secundária; conforme a psicanálise ensina, é possível que sujeitos encontrem prazer em momentos adversos e de intenso sofrimento — a guerra, por exemplo, funcionaria como uma oportunidade de fruição dos impulsos destrutivos e de ganho narcísico quando o inimigo (não-Eu) é abatido.
Em virtude disso, na atual conjuntura, a ausência de regulamentação das mídias (redes sociais) sinaliza conivência com os ataques à existência do outro, transformando sua dor em objeto de lucro e perversão, negando-lhe a dignidade. O império da racionalidade tecnológica, alimentado por dados e informações por meio de algoritmos, e, portanto, pela economia da atenção, não é neutro: busca, acima de tudo, as “cifras” em bilhões. Dessa forma, torna-se instrumento do capitalismo e de sua voracidade em transformar tudo em mercadoria, doa a quem doer.
Por fim, à guisa de conclusão, salienta-se que a adultização da infância nas redes sociais não é apenas um efeito colateral do capitalismo neoliberal, mas a própria materialização da vida danificada — em que o sofrimento de grupos vulneráveis se converte em espetáculo e em vantagem econômica, enquanto a sociedade brasileira oscila, como um pêndulo entre cordialidade e cinismo, mantendo sua “sociopatia grave”[16]. Nessa engrenagem, o sofrimento infantil é instrumentalizado, racionalizado e, por fim, denegado.
Referências
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2021.
ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1993.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
AGÊNCIA BRASIL. Mais de 6 mil crianças são resgatadas do trabalho infantil em 2 anos. Agência Brasil, Brasília, 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/. Acesso em: 4 set. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 4 set. 2025.
BRASIL. Lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022. Dispõe sobre medidas protetivas e penais para a proteção de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 maio 2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/Lei/L14344.htm. Acesso em: 4 set. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 4 set. 2025.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: Estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro, 2015.
MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (MTE). MTE afasta 345 crianças e adolescentes do trabalho infantil em Minas Gerais. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego. Acesso em: 4 set. 2025.
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ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
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[1] Expressão utilizada por Theodor W. Adorno em uma de suas principais e mais emblemáticas obras, Minima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada (1993).
[2] O psicanalista inglês Donald W. Winnicott compreendeu isso por falso self, que, em linhas gerais, funciona como uma “máscara social”, uma fachada que encobre o verdadeiro self, a capacidade criativa.
[3] A era do capitalismo de vigilância (2020), de Shoshana Zuboff.
[4] Constituição Federal de 1988.
[5] Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), promulgado em 1990.
[6] Por exemplo, a Lei Henry Borel, promulgada em 2022.
[7] Segundo a acepção de Hélio Pellegrino, em Pacto edípico e pacto social (1983).
[8] No sentido formulado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1995).
[9] Mais de 6 mil crianças são resgatadas do trabalho infantil em 2 anos | Agência Brasil.
[10] SaferNet Brasil alerta que 64% das denúncias recebidas em 2025 são de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes na internet | SaferNet Brasil.
[11] MTE afasta 345 crianças e adolescentes do trabalho infantil em Minas Gerais — Ministério do Trabalho e Emprego.
[12] Vídeo postado em seu canal do Youtube, em 06 de agosto de 2025. adultização. https://www.youtube.com/watch?v=FpsCzFGL1LE
[13] Conforme a teoria lacaniana, somos subjetivados pelo Outro. O sujeito do inconsciente é efeito da inscrição dos significantes.
[14] Podemos viver sem oxigênio, mas jamais sem liberdade, diz Bolsonaro. https://www.poder360.com.br/governo/podemos-viver-sem-oxigenio-mas-jamais-sem-liberdade-diz-bolsonaro/.
[15] Zema critica PT e diz ser “baixo” usar pedofilia para regular redes
[16] Efeito da ganância das elites nacionais, que buscam manter seus oligopólios em conluio com o capital estrangeiro. Essa aliança produz, consequentemente, um cenário de miséria e pobreza, incapaz de garantir os direitos básicos à existência. Observa-se que a “sociopatia grave” (Pellegrino, 1983) pode decorrer da falta de empatia em relação aos cidadãos brasileiros — aqueles que, em sua pobreza, sustentam a economia do país.