Por Lorenza Carlesso Mariano e Pedro Boni Rezende
A religião, enquanto elemento constitutivo das sociedades, sempre esteve associada a processos de construção simbólica e de socialização entre os membros dessas comunidades (HOLANDA, 1936). No Brasil, cuja formação sociocultural se dá sob forte influência do catolicismo e das religiões afro-brasileiras, a fé tem papel central na vida pública e privada, atravessando gerações (FREYRE, 1933) e sendo base de diversas partes da legislação brasileira, mesmo sendo o Brasil um estado Laico.
O avanço da tecnologia digital, especialmente da inteligência artificial, gera novas dinâmicas de interação religiosa, desde a automação de discursos espirituais, em sites específicos de igrejas, que contém uma inteligência artificial onde é possível depositar suas preces, até a produção de conteúdos visuais hiper-realistas por qualquer pessoa que saiba o mínimo do funcionamento da IA, que podem ser utilizados para manipulação da fé e, consequentemente, da política. Idosos, frequentemente menos familiarizados com as tecnologias, tornam-se vulneráveis à desinformação, acreditando na autenticidade de materiais criados artificialmente. O presente artigo discute essa relação entre IA, religião e vulnerabilidade digital.
Inteligência artificial e produção de discursos religiosos
A construção da fé envolve processos de simbolização que foram historicamente mediados por instituições religiosas e lideranças espirituais (FERNANDES, 1975). Com a expansão das tecnologias digitais, essa mediação passa a ser compartilhada com algoritmos, que produzem e disseminam conteúdos religiosos por meio de chatbots, síntese de voz e manipulação de imagens. Vale ressaltar que, por mais que tudo seja feito por algoritmos, existe alguém, com alguma intenção, boa ou ruim, atrás de cada código feito e analisado pela rede de inteligência.
No contexto brasileiro, a presença religiosa na internet é significativa, incluindo igrejas que utilizam IA para pregações automatizadas e aconselhamento espiritual. No entanto, o uso de deepfake, uma tecnologia que coloca o rosto e a voz de um indivíduo para falar algo pré selecionado e, muitas vezes sem autorização, para gerar vídeos que simulam aparições divinas ou discursos de líderes religiosos representa um desafio ético e epistemológico, colocando em questão a distinção entre fé genuína e manipulação tecnológica.
Manipulação e vulnerabilidade digital entre idosos
A recepção de conteúdos religiosos gerados por IA varia conforme a inserção digital dos indivíduos. Conforme argumenta Paulo Freire (1987), o acesso ao conhecimento é um fator essencial para a autonomia crítica dos sujeitos. Idosos, cuja socialização ocorreu predominantemente em ambientes analógicos, apresentam menor letramento digital e, consequentemente, maior vulnerabilidade diante da manipulação tecnológica, sendo mais propícios a acreditar nessas tecnologias “milagrosas” que falam diretamente com uma entidade religiosa.
A difusão de conteúdos falsificados pela IA explora elementos simbólicos profundamente enraizados na cultura religiosa brasileira, tornando difícil a distinção entre materiais autênticos e fabricados. A confiança depositada em líderes espirituais e a ausência de filtros críticos para informações digitais contribuem para a aceitação de discursos que reforçam determinadas ideologias sem uma avaliação mais aprofundada, fazendo com que discursos nocivos, como homofobia, transfobia, racismo e entre outros possam ser reforçados de uma maneira que entre diretamente nas raízes dessas pessoas, dificultando sua retira posterior.
Desafios éticos e soluções
A manipulação da fé por meio da tecnologia levanta questões éticas sobre a responsabilidade das plataformas digitais e dos produtores desses conteúdos (SANTOS, 2020). O uso da IA na geração de discursos religiosos deve ser debatido à luz de aspectos políticos, educacionais e regulatórios.
Entre as medidas preventivas, destaca-se a necessidade de políticas públicas que promovam a educação digital, assegurando que populações vulneráveis, especialmente idosos, tenham acesso a recursos que permitam uma compreensão crítica dos conteúdos disseminados pela internet. Além disso, mecanismos de verificação da autenticidade de vídeos religiosos podem ser desenvolvidos por plataformas digitais como forma de mitigar os impactos da desinformação.
Ademais, caberia a responsabilização de eventuais situações jurídicas a empresa que gerência a inteligência artificial, uma vez que ela, por não ser bem regulamentada, permitiu que essas coisas acontecessem e sabiam desses possíveis riscos, sendo coniventes e cúmplices.
Considerações finais
A relação entre inteligência artificial e religião evidencia um novo desafio social: a manipulação de crenças por meio da tecnologia. Esse fenômeno afeta especialmente idosos, que, devido à menor familiaridade com o ambiente digital, podem interpretar conteúdos gerados por IA como autênticos.
Diante desses desafios, é fundamental avançar no desenvolvimento de políticas de alfabetização digital e na regulamentação do uso da IA na produção de discursos religiosos e culturais. Estudos futuros podem aprofundar a interface entre tecnologia, fé e vulnerabilidade social, explorando formas de proteção contra manipulações digitais no contexto religioso brasileiro.
Referências
FREYRE, G. Casa-grande & Senzala. São Paulo: Global Editora, 1933.
HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1936.
FERNANDES, F. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. São Paulo: Perspectiva, 1975.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
SANTOS, B. de S. Para uma nova gramática da política. São Paulo: Boitempo, 2020.