CPI das Bets: Cordialidade e obscenidade brasileira

CPI das Bets: Cordialidade e obscenidade brasileira

Rafael da Silva Shirakava[1]            

A sessão da CPI[2] das Bets, ocorrida em 13 de maio de 2025, protagonizada pela influenciadora digital Virgínia Fonseca, explicitou não apenas o vínculo entre o mercado de apostas e figuras públicas: revelou, de modo obsceno e cordial, o colapso simbólico das instituições políticas brasileiras. Este ensaio propõe uma leitura crítica do episódio a partir das noções de cordialidade (Holanda, 1995) e obscenidade (Marcuse, 2024), entendendo-as, no contexto brasileiro, como sintomas de um capitalismo periférico em estado avançado de decomposição e reestruturação.

Cordialidade

Entre risadas, selfies, falta de decoro parlamentar e desacato à autoridade, a presença da influenciadora e apresentadora Virgínia Fonseca na CPI das Bets, realizada em 13 de maio de 2025, evidenciou uma faceta da obscenidade[3] sociopolítica do Brasil: a cordialidade.
Autêntica marqueteira do seu tempo, Virgínia apareceu trajando um moletom preto com uma foto da própria filha estampada, cujo objetivo era performar uma jovem “despojada”. Além disso, carregava uma garrafa Stanley cor-de-rosa — objeto que serviu de ornamento à sua impostura (encenação[4]). Tudo isso, certamente, para gerar “engajamento” e “cortes” em redes sociais como Instagram e TikTok, que atualmente compõem parte expressiva dos meios de comunicação de massa, da sociedade do espetáculo.
No entanto, o que surpreende não é o fato de Virgínia ser um “eu-etiqueta” ou um simulacro, no qual seu corpo é uma prateleira de produtos que, de forma recorrente, precisam ser estrategicamente vendidos e comprados — tal como ela fez na vexatória CPI. Seu jeito obtuso, bem como sua suposta ignorância, vem de longa data. Suas ações são “instagramáveis”, geram lucro e não possuem nenhum sentido emancipatório para aqueles e aquelas que a seguem, já que seus delírios de consumo e estilo de vida são os ideais propagados pelo discurso capitalista. Há, em suas ações, a glorificação do individualismo e do personalismo típicos do capitalismo tardio, mas que, no Brasil periférico e cordial, são drasticamente acentuados.
O que realmente escandaliza são as ações de senadores como Jorge Kajuru[5] e Cleiton Azevedo[6], que, eleitos pelo povo brasileiro, contribuíram para um patético espetáculo custeado com dinheiro público. Nos enunciados de Kajuru, é flagrante o sentido afetivo e ambiguamente agressivo daquilo que Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, chamou de “homem cordial” — categoria sociológica de matriz weberiana, decisiva para a compreensão da permanência de certos comportamentos que, mesmo na esfera pública, continuam a ancorar-se em disposições subjetivas e emocionais.
O discurso histriônico (e, talvez, hiperbólico) de Kajuru é ilustrativo quanto a isso: representa os aspectos descritos por Holanda acerca da cordialidade, cuja principal característica é a primazia dos laços cordiais, afetivos, em detrimento do bem público (a coisa pública). Ao ser deixada de lado, a racionalidade política dá lugar a uma irracionalidade que, longe de ser exceção, se naturaliza e perpetua a barbárie como norma. Nas palavras de Kajuru: “Nós estamos aqui diante de uma mulher. De uma mulher que vive do talento dela — o que é raro —, da capacidade dela de se comunicar, e que se transformou em um fenômeno pela capacidade dela de ser influencer.
Porém, a capacidade de comunicação de Virgínia não decorre de sua oratória propriamente dita — nem de sua capacidade cognitiva, evidentemente —, mas da ostentação de um estilo de vida inacessível à maior parte da população; sem contar as polêmicas envolvendo a qualidade questionável dos produtos de sua empresa, a Wepink. O que não falta são denúncias de golpes aplicados pela empresa — da comercialização de produtos ineficazes à venda de cursos vazios de conteúdo. Uma simples busca no Google é suficiente para confirmar esse histórico de má-fé.
Além disso, Kajuru afirmou respeitar o sogro de Virgínia, o cantor Leonardo — uma das personificações do entrelaçamento entre a indústria cultural e o agronegócio brasileiro —, com quem, segundo o próprio senador, mantém uma amizade há 40 anos. Tal complacência escancara o calor “afetuoso” e “afável” da canalhice político-cordio-patrimonialista — ou, mais precisamente, a maneira como os sujeitos cordiais se relacionam com aqueles e aquelas considerados “próximos”, “amigos de fé, irmãos, camaradas”, “gente como a gente”, “boa-praça” numa lógica de interesses sustentada por redes de influência — que podem agregar desde nepotismo e fisiologismo até a troca de favores. Em síntese, trata-se de um sintoma do patrimonialismo e de sua íntima relação com a cordialidade. A administração pública não é percebida como um domínio impessoal, mas como instrumento de favorecimento pessoal, por meio de “estamentos burocráticos[7]” enraizados em nossa cultura.  E, para reforçar a defesa de Virgínia, Kajuru ainda sugeriu que a investigada seria honesta — afinal, pertence à família de Leonardo, seu amigo —, tentando validar uma premissa evidentemente insustentável. Segundo Kajuru: “Ela veio aqui com hombridade, foi sincera e verdadeira. Não tem nada a ver com esse escândalo. O marido dela, Zé Felipe, é filho do meu amigo, o cantor Leonardo, um homem de caráter. Não posso permitir que se jogue lama numa família honesta.” Nesse sentido, compreende-se que as opiniões do senador Kajuru visivelmente refletem a primazia de vontades particulares em detrimento da impessoalidade. Representam moedas de troca, clientelismo, foro privilegiado, possibilidades de acesso a círculos fechados, bem como o apoio de determinados setores da economia política — o que garante uma base eleitoral consistente para as próximas eleições.
Em face do exposto, não é exagero afirmar que a predileção de Kajuru atesta como os vetores da política brasileira favorecem sistematicamente aqueles que detêm tanto o poder econômico quanto o de influência — e não o povo, que, vivendo sob a crise estrutural do capital, foi e continua sendo incentivado a sacrificar seus salários em apostas e cassinos online. Essas plataformas, aliás, foi exaustivamente promovidas por Virgínia Fonseca e outros influencers, como Rico Melquiades, Felipe Neto, Wesley Safadão, Gusttavo Lima e Carlinhos Maia. Tais “artistas” são, sem exceção, estrelas da decadência sociopolítica de nosso tempo e pouco contribuem para qualquer forma de emancipação das massas; ao contrário, expressam o Zeitgeist de um mundo à beira do colapso, graças ao esgarçamento do tecido social sob o neoliberalismo.
Ao defender Virgínia, a garota-propaganda das Bets, Kajuru contribuiu para a continuidade do infausto jogo de desigualdades da economia política capitalista, que mutila cotidianamente a existência de milhares de brasileiros e brasileiras pobres e miseráveis. Na ilusão de se tornarem milionários — ou mesmo na tentativa desesperada de pagarem contas básicas, como água, luz ou supermercado —, homens e mulheres arriscam suas finanças e sua qualidade de vida.                                                                                                                                Nessa conjuntura, intensificam-se ainda mais as desigualdades socioeconômicas que assolam o país e que, ao contrário do que vêm sendo apresentado, deveriam ser enfrentadas com seriedade, honestidade e hombridade — e não com conivência, afagos e risadas dirigidas a Virgínia Fonseca, que nitidamente manipula sua audiência. Pois, quanto mais ela lucra, mais os apostadores têm sua dignidade vilipendiada. As casas de apostas, por sua vez, lucram ad infinitum em cima da degradação sistemática de trabalhadores e trabalhadoras.
Portanto, a CPI de 13 de maio confirmou que a hipótese da cordialidade continua a ter significativa relevância para a compreensão do cenário político atual. Não explica a totalidade, evidentemente, mas lança luz sobre um fenômeno cristalizado em nossa cultura, que se repete sintomaticamente.

Obscenidade

E o que dizer do senador Cleiton Azevedo, que, após tecer elogios à influenciadora e afirmar que “A Virginia é fonte de riqueza. Nós somos fonte de despesa. Nós só trazemos despesa para a população brasileira. A Virgínia não, ela traz fonte de riqueza, ela gera emprego” e além disso pediu uma selfie com a investigada — selando, assim, a bancarrota simbólica das investigações? A categoria de obscenidade, conforme elaborada por Herbert Marcuse (2024), pode oferecer uma ferramenta teórico-crítica pungente para compreender não apenas a manipulação cínica do jogo político, mas também a passividade — quando não a conivência — das massas diante das injustiças que se arquitetam contra elas mesmas. Em última instância, isso significa apreender a forma contemporânea da exploração do homem pelo homem.
 No capitalismo, os indivíduos são explorados sem plena consciência disso, pois “o capitalismo se reproduz ao transformar-se a si mesmo, e essa transformação se dá, sobretudo, no aperfeiçoamento da exploração” (Marcuse, 2024, p. 18). A naturalização dessa exploração constitui a base da obscenidade capitalista: um sistema no qual as contradições são amplamente percebidas — mas raramente contestadas. Por isso, a sociedade que Marcuse observa como obscena é, simultaneamente, violenta e contrarrevolucionária, na medida em que qualquer forma de liberação, inclusive a sexual, acaba por fortalecer a coesão do sistema e reafirmar as suas estruturas efetivas e afetivas de poder (Marcuse, 2024). A abundância asfixiante concentrada em alguns países, os discursos moralizantes de religiosos, políticos e celebridades, a exaltação de conflitos armados, as desigualdades extremas e os genocídios são exemplos paradigmáticos dessa obscenidade (Marcuse, 2024). Como afirma o teórico crítico,“obscena não é a fotografia de uma mulher nua que mostra seus pelos pubianos, mas de um general fardado dos pés à cabeça expondo suas medalhas conquistadas em guerras de agressão […]” (Marcuse, 2024. p. 18).
No caso da CPI das Bets, a obscenidade se manifesta com nitidez: trata-se de uma amostra bruta das contradições do capitalismo brasileiro, atravessado pela cordialidade, pelo patrimonialismo e pelo moralismo. Com efeito, o objetivo dos influencers não é a emancipação popular, mas o aumento das cifras, os jogos de influência, as negociatas e a exploração dos cidadãos por meio de brechas na legislação. A (im)postura de Virgínia Fonseca, somada à atitude do senador Cleiton Azevedo, evidencia o cinismo característico do neoliberalismo brasileiro: vende-se uma imagem de “simplicidade” e “humildade”, enquanto se reproduz o culto à falcatrua e à espetacularização — não só midiática, mas também da política e da justiça —, o que agrava a desconfiança nessas instituições.
À sua maneira, Marcuse, na década de 1970, compreendia que a sociedade afluente não produziria a liberdade — e, portanto, a emancipação. De fato, pode-se dizer que seu prognóstico mantém-se atual, já que a abundância de produtos, o consumo generalizado, o alto nível tecnológico ainda não são capazes de emancipar os homens. Fato esse que pode ser observado no apoio que as massas creditam aos seus influencers. A defesa aguerrida de personalidades — cujos intelectos não ultrapassam o campo da aparência fenomênica e da própria satisfação narcísica — indica a operacionalidade do “recalque” freudiano: o sujeito ignora qualquer elemento que venha a desmontar as fantasias articuladas em torno do ideal de Eu. No entanto, a ignorância tem seu preço, e cada sujeito precisa enfrentar a responsabilidade pelo seu próprio inconsciente — o que demanda um árduo trabalho de elaboração.
Longe de culpar usuários e seguidores, é preciso entender que nenhum sujeito está desarticulado dos processos socioculturais (Mezan, 2015). Somos manifestações do tempo, das ideologias e da economia política. E o mal-estar cultural é, ao mesmo tempo, singular e coletivo, pois este não está desvinculado daquele (Freud, 2021). Assim sendo, entende-se que as ações de políticos (senadores, deputados, presidentes etc.) e (sub)celebridades reverberam no outro, visto que somos (d)efeitos dos discursos enigmáticos do Outro. Criamos expectativas, fantasiamos e desejamos a partir de posições engendradas frente ao desamparo estrutural (Freud, 2021). Graças a isso, nos iludimos com facilidade, uma vez que desejamos encontrar o objeto perdido capaz de restituir a plenitude de outrora, a tensão zero, o nirvana, o vazio existencial. E, de modo pré-consciente, os influencers sabem disso, já que são assessorados por agências de marketing e propaganda, isto é, grandes corporações que sabem manipular os processos inconscientes[8] — afinal, a propaganda é a alma do negócio, dizem. As promessas de se tornarem milionários, ou até mesmo de pagar as contas básicas, são transformadas em armadilhas, capazes de desmobilizar laços de solidariedade, comunidade e revolução. Publicadas de modo invasivo, em praticamente todos os domínios da surface web, o jingle, os sons das “roletas” e suas explosões, as cores vibrantes de tigrinhos segurando notas de dinheiro e a voz do influencer violentam os sentidos, deixam suas marcas no psiquismo, excitando os sujeitos. E, assim como ninguém está imune às influências da indústria cultural (Adorno; Horkheimer, 2006), poucos escapam ao que Christoph Türcke (2010) descreve como uma “sociedade excitada” — um diagnóstico que não apenas radicaliza o caráter “totalitário” da indústria cultural, mas também aprofunda a noção de uma sociedade dominada pela espetacularização da existência, conforme teorizada por Guy Debord.
A estrutura farsesca da CPI, que para muitos gerou risos e memes, manifestou a falta de empatia tanto com a população brasileira quanto com a gravidade do problema investigado — e, claro, seus efeitos: acentuação da miséria, suicídios, endividamentos, fome, transtornos de ansiedade e depressão. Por esta razão, a conivência das risadas e dos “lacres”, com direito a selfies, não pode ser reduzida a uma banalidade. Ao contrário, expressa a face obscena da cordialidade: ponto de fusão entre o espetáculo do mercado e o teatro político que nos arrasta a um precipício de degradação e desumanidade.

Referências:

ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.         

FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura e outros ensaios. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MARCUSE, Herbert. Um ensaio sobre a libertação. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2024.

MEZAN, Renato. Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

[1] Doutor e mestre em Psicologia e Sociedade (UNESP/Assis). Graduação: Filosofia (Unesp/Marília) e Psicologia (Unesp/Assis).

[2] Comissão Parlamentar de Inquéritos.

[3] Este termo será aprofundado no segundo tópico.

[4] Sugar o microfone no lugar do canudo da garrafa, por exemplo.

[5] Senador por Goiás, pelo Partido socialista brasileiro (PSB).

[6] Senador por Minas Gerais, pelo Partido liberal (PL).

[7] Conforme elucidado por Raymundo Faoro, em Os donos do poder.

[8] Segundo Renato Mezan (2015), o publicitário manipula o conteúdo latente e manifesto, mecanismos esses que estruturam a atividade onírica. Ele induz sonhos de consumos.

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