Por Vitória de Almeida Kouzeki, Thales Leite dos Santos e Luís Fernando Crepaldi Trevisan.
A utilização de tecnologias baseadas em IA por movimentos sociais em suas estratégias de mobilização e resistência não significa também, apenas, a sua utilização como um fim. Ao agregar a expansão destas tecnologias no saber e práxis política, perceber quais lacunas a inteligência artificial vem se propondo a preencher, como atividades que o trabalhador não consegue obter ou suprir por falta de tempo ou dinheiro, serve categoricamente de evidência de que o sistema capitalista sobrecarrega a classe trabalhadora e exige de fato isso: o sobrehumano. Ao utilizar o artigo “Esboço para o aprofundamento da Inteligência Artificial” para embasar a discussão sobre as estratégias de mobilização e enfrentamento por movimentos sociais, fica claro que o objetivo da análise não é suprimir a inteligência artificial como instrumento válido de luta, visto que o texto supracitado dialoga sobre a não supressão desse Objeto Técnico, e sim seu aprofundamento para um uso ético.
O artigo de Diego Vincentin explica que a inteligência artificial é um sistema de classificação e predição, organização de dados e busca de padrões a partir de algoritmos e modelos, enfatizando que tal sistema classificatório e preditivo serve ao colonialismo epistêmico euro e antropocêntrico (Vincentin, 2022).
Ao longo do excerto, Vincentin retoma os estudos de Simondon e traz para a presente reflexão alguns pontos importantes: A postura dicotômica do ser humano diante da técnica em que se é sentido que a técnica é hora benéfica por sua materialidade e utilização, hora é maléfica por seu sentimento de revolta por ter sido escravizada (portanto a partir desse momento é uma técnica com alma). Se o ser humano cria e inventa uma técnica que exterioriza seu trabalho, mas essa técnica causa estranhamento a ele, estamos falando de uma “alienação humano-técnica”.
Feuerbach postula que a alienação em relação ao objeto ocorre em três instâncias – exteriorização, estranhamento e dominação (Vasquez, 1977). A crítica proposta em relação à religião traz Deus como projeção da essência humana e não como entidade separada e real (Feuerbach, 1843). Ou seja, o homem exterioriza suas qualidades em um ser supremo, da mesma forma temos a IA como exteriorização da inteligência humana representada em uma máquina. O processo leva ao estranhamento do homem em relação a si mesmo, adorando uma imagem idealizada de si (Deus) como algo alheio. Ao projetar racionalidade e decisões para fora (sistemas de IA) emerge o risco de estranhamento: deixamos de reconhecer a nós mesmos e enxergamos o outro, até mesmo algo superior. A religião vem por fim como forma de dominação, quando o homem submete sua razão a um ser externo (Deus) se privando da liberdade. De forma semelhante, o poder sobre os algoritmos se concentra em mãos específicas (governos e empresas), mas tem seus efeitos universalizados
A reflexão atrelada ao modo de produção capitalista nos revela que por trás de todo o sistema industrial e gerador de riqueza atual, o presente mundo das IAs se encontra firmando parcerias e fundamentando um quarto estágio de uma revolução industrial. Ainda dominada pelas mesmas corporações oligopolistas, a integração desta tecnologia ao sistema industrial tem tido apoio e sendo subsidiado por estados-nação neoliberais que anseiam este avanço tecnológico garantindo fins econômicos, administrativos e até militares, tomando consciência de que isso estaria se encaixando em parte daquilo que Marx se referiu como, as condições gerais de produção.
Encontrado como uma das características estruturais, descritas por Witheford, Kjøsen e Steinhof, é a presença aparentemente anômala de um componente grande e vigoroso de código aberto na pesquisa em IA, onde ferramentas e modelos são distribuídos gratuitamente e trabalhados de forma cooperativa, mas que, no entanto, são canalizados em direção às plataformas e prioridades dos oligopolistas da IA. (p.31). Portanto, a briga pela detenção de tais ferramentas e o crescente financiamento trazem uma aceleração de difícil acompanhamento.
Apesar de ainda ser uma tecnologia baseada em uma grande rede de interações sociais para funcionar e buscar dados, é válido ressaltar que o objetivo final visa uma autonomia nunca antes vista sem precedentes ao trabalho, porém Witheford, Kjøsen e Steinhof discorrem que:
Previsões passadas de um ‘futuro sem emprego’ foram falsificadas: a IA irá repetidamente seus ciclos de ‘primavera/inverno’ de grandes esperanças e realidades decepcionantes. Quaisquer que sejam as realidades tecnológicas que sustentem as promessas e ameaças do capital da IA, não são suficientes para alterar as duras realidades da contínua dependência em larga escala do capital em mão de obra humana explorada. Portanto, não há implicações imediatas significativas da IA para as lutas socialistas ou comunistas. (pg. 145 – 146)
Diante disso, este intenso processo nos revela que hoje, em muitas áreas do trabalho foi sendo esvaziado o uso de trabalho humano que por sua vez tendem a buscar novas áreas que nem chegaram perto da possibilidade desta mudança.
Como uma bola de neve, a busca pela dominação de tal mercado entre as próprias empresas, aumento da desigualdade social e crises pelas quais o próprio sistema se coloca são apontados nos principais trechos da obra de Marx que preveem que o desenvolvimento tecnológico compulsivo do capital não apenas irá eventualmente matá-lo, mas também deixará um legado de máquinas para o socialismo herdar e utilizar de forma emancipadora. (p. 147).
Em presente momento, o acesso às IAs está cada vez maior, e junto a isso, assumindo a lógica do modo de produção capitalista, está sendo direcionada aos moldes da privatização e se tornando cada vez menos democrático o uso, seja recreativamente ou produtivamente, de tais Inteligências Artificiais, ao passo que limitações de acesso vêm sendo colocadas a fim de buscar com que o consumidor final se proponha a pagar por uma maior dinâmica, como é o caso de plataformas como o ChatGPT.
Isto posto, é inegável a imbricação da inteligência artificial no nosso cotidiano, mesmo que de maneira imperceptível, e que tal objeto técnico é muito mais complexo por se inserir nas categorias da democracia burguesa como o trabalho, citado acima.
Aos movimentos sociais, estes em que há a luta por direitos, onde fica essa inteligência artificial que já se mostrou como uma “atualização das relações coloniais, de exploração extravista e racista?” (Vincentin, 2022).
Basta lembrar do exemplo do Twitter (atualmente X), que em 2021, o algoritmo de corte de imagens exclui minorias de fotos, como por exemplo, negros. Onde centralizam majoritariamente pessoas brancas como nos mostram matérias encontradas no G1 e na CNN.
Segundo Corrêa (2012) movimentos sociais no contexto do capitalismo, onde há predominantemente um modelo de gestão de poder dominador, de maneira geral estabelece dois tipos de classes: as dominantes e as dominadas. Tais movimentos, feitos pela classe dominada, resistem à dominação e modificam relações de poder estabelecidas, visando transformação social- seja com metas a curto prazo ou a longo prazo.
Ao realizar a pergunta sobre como a inteligência artificial pode servir de enfrentamento, chega-se à conclusão de que tal tecnologia não deve ser apenas vista como uma ferramenta na mão do ser humano, mas sim como um sistema que, em conjunto com os movimentos sociais, passará por um processo semelhante ao qual esses movimentos e a sociedade civil almeja: o da transformação. São, portanto, necessárias “formas de se utilizar essa técnica que ultrapassem a ética de destruição e dominação e caminhem no movimento oposto da cooperação” (Vincentin, 2022). Nesse sentido, os movimentos sociais precisam continuar operando sem deixar de vista a que nascem. Suprimir desigualdades, discriminação e injustiças sociais, caminho de transformação semelhante ao qual essa tecnologia, a inteligência artificial (operada através de aprendizado em humanos, desta rede de interações sociais) precisa evoluir para uma ética que garanta que saiamos de um estado de dominação onde as contradições sociais são uma constante. Essa transformação não se daria, evidentemente de maneira natural, e sim fruto de uma intensa e revolucionária mobilização para sair da ética da destruição para essa ética da cooperação.
A utilização de tecnologias baseadas em IA por movimentos sociais em suas estratégias de mobilização e resistência não significa também, apenas, a sua utilização como um fim. Ao agregar a expansão destas tecnologias no saber e práxis política, perceber quais lacunas a inteligência artificial vem se propondo a preencher, como atividades que o trabalhador não consegue obter ou suprir por falta de tempo ou dinheiro, serve categoricamente de evidência de que o sistema capitalista sobrecarrega a classe trabalhadora e exige de fato isso: o sobrehumano.
A sua possível contribuição na educação, conscientização, formação política e no desenvolvimento do pensamento crítico para parcelas menos favorecidas da sociedade, fornecendo auxílio no desenvolvimento de plataformas que levem adiante pautas decoloniais, feministas, antirracistas dentre outras tantas de maneira mais simplificada e acessível, pode ser um dos diversos modos de se utilizar essa tecnologia a favor da sociedade, no entanto sem perder de vista o que foi dito acima, para que a inteligência artificial não entre “de fininho” se mostrando apenas como benéfica e utilitária, mas trazendo, ela também, suas contradições em seu uso e consequências.
Por fim, o texto ressalta a importância de uma ampliação do conhecimento sobre inteligência artificial de maneira crítica, para que essa técnica não seja uma “caixa preta”, desconhecida e aberta só por alguns. Já existem movimentos organizados pela sociedade civil em que o objetivo é aproximar a população deste saber, como o instituto de ensino Minas Programam, voltado para inclusão de mulheres dentro do mercado de desenvolvimento tecnológico, assim como diversos outros programas e ações voltadas para esse fim.
Referências
CORRÊA, Felipe. Poder e participação. Plural, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 113-128, 2012.
DAVE, Paresh. Twitter diz que algoritmo de corte de imagens exclui negros e homens de fotos. CNN Brasil, São Paulo, 19 maio 2021. Tecnologia. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/twitter-diz-que-algoritmo-de-corte-de-imagens-exclui-negros-e-homens-de-fotos/. Acesso em: 9 jun. 2025.
DYER-WITHEFORD, Nick; KJØSEN, Atle Mikkola; STEINHOFF, James. Inhuman power: artificial intelligence and the future of capitalism. London: Pluto Press, 2019.
FEUERBACH, Ludwig. Princípios da filosofia do futuro [1843]. Trad. Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. (Coleção Textos Clássicos de Filosofia).
FOLHAPRESS. Mulheres negras usam a computação para reduzir desigualdade e contar histórias. O Tempo – Brasil, Belo Horizonte, 20 nov. 2021. Disponível em: https://www.otempo.com.br/brasil/mulheres-negras-usam-a-computacao-para-reduzir-desigualdade-e-contar-historias-1.2572407. Acesso em: 9 jun. 2025.
G1. Twitter exclui algoritmo de recorte de imagem por viés contra minorias. G1 – Economia/Tecnologia, San Francisco, 19 maio 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/05/19/twitter-exclui-algoritmo-de-recorte-de-imagem-por-vies-contra-minorias.ghtml. Acesso em: 9 jun. 2025.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Trad. Luiz Fernando Cardoso. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
VICENTIN, Diego. Esboço para o aprofundamento da Inteligência Artificial. Ideias, Londrina, v. 13, p. e022013, 2022.